Garotos do cerrado
- Irineu Ferreira
- há 4 horas
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Relendo o romance O Grande Mentecapto, de Fernando Sabino — especialmente seu primeiro capítulo — encontro as aventuras e desventuras da infância de Geraldo Viramundo, embora ele afirme ser José Geraldo. Viramundo nasceu num vilarejo entre Belo Horizonte e Rio de Janeiro, curiosamente chamado Rio Acima. Como foi parar por lá, ninguém sabe.
Geraldo Viramundo era o caçula entre treze irmãos — hoje isso é quase um abuso. Eu e uma minoria da minha cidade somos classificados como genuínos, nativos. Motuca vem de “mutuca”, uma mosca-vampiro que ataca bois e cavalos. Nascemos e crescemos aqui, como Viramundo lá.
Na vila de Viramundo, assim como no nosso distrito, andávamos sem os receios de hoje — com tempo e liberdade para tudo. Aqui, como lá, o mato era o cenário de todas as aventuras. O cerrado dominava os campos. Lá, não sei, mas as brincadeiras eram praticamente as mesmas, e as traquinagens também.
Comíamos terra, botávamos lombriga pelo traseiro, caminhávamos atrás das fileiras de formigas só para ver até onde iam. O pai de Viramundo tinha uma venda de secos e molhados que ele amava. Adorava furtar garrafas de Guaraná, fazer xixi dentro e recolocar no mesmo lugar para o pai não descobrir - dá para imaginar o resultado.
Nós, como Viramundo, adorávamos o estilingue. Usávamos caroço de mamona para não machucar as rolinhas — depois, prendíamos num viveiro, só por diversão. Viramundo enterrou um ovo choco e fez fogo em cima, para ver se nascia um pinto.
Aqui, a gente levava picadas de marimbondo — e, às vezes, até de cobra — só para pegar umas melancias, algumas mangas ou umas mexericas Ponkan do pomar farto de um sítio de família japonesa. Fazíamos galinha dançar em cima de lata quente, amarrávamos latas no rabo de gato com bombinhas dentro. Tivemos sarampo, caxumba, coqueluche... até hoje trago na testa a marca da catapora. Ainda bem que foi catapora, podia ser pior!
Viramundo pegou sarna só para se coçar, correu de boi bravo e botou cigarro na boca de sapo para fumar até se arrebentar. Aqui pegávamos rabeira em caminhão e depois levávamos uma surra quando chegava em casa. Viramundo escondeu-se entre as roupas sujas do banheiro só para espiar a irmã mais velha tomar banho. A garotada daqui adorava a chegada de um circo, não para ver o espetáculo, mas para espiar a bailarina trocar de roupa em sua tenda. Um desafio e recompensa para poucos. Nesse que era um imenso cerrado, não tenho coragem de contar como alguns moleques perdiam a virgindade por aqui... - Só lendo o livro do Sabino para entender essa proeza.
Há muitas semelhanças entre a infância mineira, a carioca e a paulista. Mudam apenas os nomes de algumas brincadeiras. E como o romancista encerra a fase de infância do Viramundo, faço de suas palavras minhas linhas finais:
“Só quem passou a infância junto a um rio pode saber o que um rio significa para um garoto.”
Mal acabavam nossas aulas no grupo escolar, saíamos correndo, feito doidos, em direção ao rio — o nosso Salto, lá no Monte Alegre. Chegando lá, todos ficavam pelados e se jogavam na água, mesmo com o frio que fazia em junho e julho.
Poderia me alongar muito mais nas lembranças — umas inocentes, outras nem tanto. Mas aqui deixo meu agradecimento ao escritor Fernando Sabino, por me emprestar algumas doces recordações.
